40 Anos de "The Piper At The Gates Of Dawn"
publicado por Diogo Sequeira

A Lenda Interminável, de um Mago Contador de Histórias


Escrevo esta noite servindo dois propósitos. Primeiro, a recentíssima distribuição comercial da edição comemorativa (quadragésimo aniversário) do enorme "psychedelic hammer", e primeiro àlbum dos Pink Floyd. Segundo, para exprimir a minha admiração pela personalidade musical chave que foi Syd Barrett. Muitas perguntas por enquanto, talvez. Poucas respostas que gostaria de dar, uma vez que a natureza do artigo não é informativa, mas sim reflexiva e crítica. Não me levem a mal, até porque basta entrar na wikipedia para colocarem um ponto final à vossa avidez. Público louco do Galáxia Música, que me lê pela segunda vez sobre a mesma banda, e pela primeira sobre um conceito musical, pois de facto, seria de todo impossível alguém o ter feito. "The Piper Gates Of Dawn" é uma obra absolutamente única, anómala e incomparável.

Roger "Syd" Barrett constrói e lidera a banda de forma totipotente numa investida sonora brutal contra toda a racionalidade plausível, e contra todo o preconceito artístico construído mesmo dentro de um universo que assistia a "England's Newest Hit Makers" contra todo o estrato de tradição "Folk" e até "Crooner", ou retroactivamente, a um "Srgt. Peppers" munido de formas contra as fórmulas da sua própria ascensão. Por ventura, as fórmulas Pop, de uma música radiante, e de receitas mais elaboradas que pudim de pacote. A Pop hoje deserdada, a Pop colorida e multi-textural, cujo "Piper Gates" é um dos, se não o maior exemplo. Pluralidade e Irregularidade marcam o disco do princípio ao fim, que começa com uma viagem à lua, passa por encontros cósmicos e bucólicos, e termina com a encenação sonora do pesadelo esquizofrénico em que Barrett iria caír, para nunca mais se levantar. Convém referir que ele é a personagem, o mago, o ancião de vinte anos, contador de histórias, e simultaneamente protagonista de fábulas erráticas e atmosferas de horror. Syd Barrett, com objectividade matemática, é um génio, e uma persona tão genuína, tão forte, e talvez... tão ingénua e verdadeira, que passados os seus dias de plena operatividade quotidiana e musical, continua a ser a força motriz da banda, e o pilar de toda a espiral que se desenvolve entre as quatro personalidades, e toda a temática que caracteriza o nome.

"Dark Side Of The Moon" foi escrito parcialmente sobre a loucura que o afectou, sendo também um estudo socio-civilizacional sobre a vida, a liberdade, o ego, e a arte, numa encruzilhada encarnada pela figura de Syd Barrett, e pela sua música claro. Tal como muitas outras canções até 1973 lidam de forma pouco complacente com a sua personalidade, e menos escandalosamente, com a sua temática característica. Traduz-se, que por melhores músicos que sejam Waters, Gilmour e Wright, devem quase todo o pathos característico de uma música de dramatização artística e cultural, e da eterna decomposição antropológica de inpiração confessa, a uma figura, irrepetível e anómala. "Wish You Were Here" é talvez o mais uno trabalho conceptual editado, e discursa constantemente sobre o esgotamento perante a famosa vida moderna de Waters, tal como sobre a ausência, o seu anunciado tema principal. Têm em "Shine On You Crazy Diamond" uma homenagem devota ao vulto gigante que mais do que nunca desce à aparelhagem, e preenche o disco todo como um fantasma omnipresente, o que nesta altura, para quem compreende a sua história, e possui antecedentes, não deixa de ser um déja-vu. Para acabarmos a "triologia do sucesso" dos Pink, até em "The Wall", em que Roger Waters é sem dúvida o Pai, a Mãe e o Filho, Syd Barrett e o sofrimento de Syd Barrett voltam a ser inspiração para o desenho do carácter da personagem principal desta grande obra de "ópera rock".

É uma espécie de pasmo. É uma espécie de deslumbro eternecido e amargurado, perante o platónico estudante da arte da vida, da vida da arte, e de uma visão extraordinária do "quotidianismo". É também um erro. Pink Floyd tornou-se uma banda errática, e sem unidade e liderança após o dramático afastamento do seu primeiro e único líder, e agora, escabrosamente gritando digo, o seu grandes criador!

Syd Barrett é uma força produto, de diversas influências e escolas, como o bucolismo, o saudosismo ou até o surrealismo, que não deixa de se afirmar ainda hoje como um criador radical. É também uma força brutal, que faz com que o primeiro álbum se afirme portador de um instinto de auto-destruição racional, e até de excessos paranóicos, mas tão coerentes, curiosos, originais, e de facto, maravilhosos, que toda a lógica se converte em Barrett, convertendo-se toda a música em Barrett. É uma força tão brutal, e uma vida artística tão sentida e íntima, que o faz tombar passado um ano da sua edição (1967). Apesar de "The Madcap Laughs", "Barrett" e "Opel", o seu editado posterior como artista a solo, o seu génio musical, e sobretudo o seu ser visionário define-se com "The Piper Gates of Dawn". A notável competência dos restantes músicos é abafada por uma mente e por um conceito artístico novo coordentivo, centrado num pivot chave durante os cerca de quarenta minutos de duração do álbum, para não falar das aparições ao vivo, e da lógica conceptual e teatral de toda a apresentação pública, desenvolvida mais tarde.

O álbum começa com "Astronomy Domine", que traz poesia eruditamente líbida e narcótica ao domínio intelectual, com uma viagem ao sistema solar, e às águas geladas subterrâneas, expressamente, conflituosamente. É uma música incisiva e reptilária que mexe com o nosso subconsciente de forma hedonista e ao mesmo tempo, sadicamente torturante. Avançamos para o tema mais Pop do àlbum, "Lucifer Sam". O contraste dicotómico de todo o álbum expresso nas duas primeiras faixas, em que o oculto e grandioso é sensitivo, descritivo e fundamentalmente instrumental, contra uma afirmação de recolha e decomposição (talvez até paródia) popular, atenta ao simples e aos típicos, que neste contexto se tornam atípicos, misteriosos e também evocativos. Syd Barrett interpreta tanto como um alien hipnotizante, ou como um simples músico embebido na sua própria época. Os teclados e as guitarras formam uma concertina de sons inquientantes e fugidios. "Mathilda Mother" e "Flaming" são os pontos mais altos do àlbum, combinando as dicotomias básicas da personalidade de Barrett, e do próprio trabalho, tal como, deliciosamente, descrições surreais e impressionistas de contos de uma sugestividade erótica, com espaço musical e temático suficiente para projectar sensações suficientemente desconcertantes e perturbadoras, que evocam um certo "instinto de morte", traduzindo aqui uma dialéctica freudiana importante a meu ver, quanto à recôndita direcção filosófica da debandada cultural e artística do primeiro grupo. São dois temas pouco honestos, que acentuam um contraste, que por si acentua a discrepância no seguimento das quatro primeiras músicas, confrontados com "Pow R. Toc H." e a sua sinistralidade instrumental, digna da banda sonora de um pesadelo, e da pincelada de estilo folião que é "Take Up Thy Stethescope And Walk". Ambas faixas que irradiam irracionalidade pura, e se servem da construcção sonora sugestiva e da criação de uma ambiência relativa a um "palpitável indiscritível", que cristalizam duas obras primas a explorar.

Segue-se a tour-de-force, "Interstellar Overdrive". Uma composição neolítica que acentua pela sua densidade musical, e pela sua duração (9.42 minutos) a atmosfera onírica e surreal do àlbum, antes de ser uma banda sonora para uma viagem a uma outra galáxia estelar, ou para uma trip de LSD, subentendendo-se a plausível justaposição. Riff Inesquecível de Syd Barrett, também um guitarrista de excelência, e um inovador quanto ao estudo das potencialidades da distorção e da máquina de eco. "The Gnome" é uma pérola preciosa, redonda e brilhante. A evocação bucólica de personagens encantadas não podia vir mais a propósito, trazendo-nos Barrett um estudo quotidiano, representado de acordo com uma nova luz social e com uma certa perversão, à moda de antigamente, misturando Tolkien com Hansel e Gretel. O tom fantasmagórico da autêntica "narração de embalar" é notavel, e de facto perturbador, sendo esta faixa, mais uma quebra de tensão, e de qualquer lógica, que não uma ilógica imprecisa, mas palpável, quanto ao contexto do àlbum. O espírito têm continuação em "Scarecrow", precedido de "Chapter 24", de um visualismo espantoso, apesar de constituir basicamente numa excelente declamação poética sobre o homem, o tempo e a moral. E o término fica a cargo de "Bike", uma canção bastantes "catchy", mas completamente destituída de "corpo, cabeça e membros" a qualquer nível. Novamente o quotidiano e a leveza do seu viver, no trato de gestos simples mas pitorescos, apesar de estruturalmente ser a incoerência e particularmente, o ridículo, que falam por si, quer quanto à temática evocativa das duas grandes partes que a constituem, quer quanto à própria composição pouco meritosa e desenvolvida na primeira parte, para a parafernália aterradora supra-psicadélica que encerra o àlbum.

Cada música é portadora de uma energia especial e única. Este é um àlbum especial e único que todo o interessado pela música no geral, e pela actividade creativa deve ouvir. É a peça fundamental da história de uma mente que deve ser contemplada, e um guarda essências, tanto de "esquizofrenias e latidos, como de folias e esperanças".





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Anonymous Anónimo: Excelente ensaio sobre a música, a banda e o génio. Um dos teus textos mais bem produzidos e completos. Parabéns. 29/09/07, 02:26  

Blogger Anérgyné: Fantástica análise de Barrett, que apenas conheci superficialmente até hoje.
Merece que eu investigue. 29/09/07, 10:41  

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