Filosofem
publicado por Diogo Sequeira


Varg Vikernes e o Black Metal


Difícil começar assim, de frente para um corpo de temáticas tão controversas e tão complexas. Estou numa jornada de auto avaliação musical, o que penso que tem transparecido nos meus últimos artigos, relativos às minhas maiores referências musicais, e às obras que mais me marcaram. Depois de “The Piper At The Gates of Dawn”, o primeiro álbum dos ingleses Pink Floyd, trago-vos hoje um artigo relativamente extenso, sobre aquela que é uma das personalidade mais maldita do mundo da música. Falo-vos do actualmente presidiário, Varg Vikernes, a íntegra mente criadora e executora de um dos projectos mais significativos e apreciados dentro do Metal Extremo. Burzum, o nome do “one-man-show”, que desencadeia ainda hoje discussões acesas, não só por si, mas muito pelo seu conceito musical subversivo, em que “Filosofem”, lançado em 1996, é o expoente máximo.


Mas não convém ir mais longe sem contar, ou pelo menos introduzir grandes histórias. Para quem não tem contacto, ou que conhece pouco, o Black Metal é uma realidade cultural e religiosa, por mais irrisória, contraditória ou descabida que possa ser. Convém retê-lo. Convêm entender que é, antes de uma produção que visa alcançar qualquer tipo de virtuosismo, um verdadeiro movimento sócio-cultural, que ganhou expressão significativa no Norte da Europa, em países como a Suécia, a Alemanha, a Finlândia, e principalmente, a Noruega. Afirma-se de forma brutal, como uma manifestação gratuita de ódio e de revolta contra as bases fundamentais do mundo moderno, colocando a filosofia existencialista de Nietzsche ou Kierkgaard no centro de uma centrifugação de ideologias e iconologias do caos, do niilismo e do final. A anti-cristandade, a anti-modernidade, e no fundo, a anti-socialidade são os grandes vectores chave do pensamento comum antropocêntrico e satânico de uma série de bandas, divididas em duas grandes debandadas. Uma fundadora, na primeira metade dos anos oitenta, tendo os Venom, os Mercyful Fate, os Celtic Frost, e os Bathory, como os nomes mais significantes, a que se segue uma recuperação na segunda metade da mesma década, geograficamente situada, precisamente na Escandinávia, ocupando a Noruega o lugar solar num panorama musical intrinsecamente europeu, que se começava a desenhar. Mayhem, Darkthrone, Immortal e Emperor são talvez os projectos mais importantes da chamada “norwegian second wave”, em que Burzum se pode inserir, sempre como um caso marginal e justificadamente particular, graças tanto a condições orgânicas e musicais, como líricas e ideológicas.

Varg Vikernes é um caso único e creio que irrepetível. A sua música reflecte-o. Falo em antagonismo. Falo em identidades de si excêntricas, de extremos encarnados nos dois maiores vultos da altura, sendo, o outro, o assassinado, o guitarrista e fundador dos Mayhem, Euronnymus. São duas fortes definições do género, e como tal, encontra-se quase afogado o estilo dentro da dicotomia. Euronnymus, o satânico, o feiticeiro, o metafísico; Vikernes, o pagão, o nacionalista, o conservador. Foi através de uma demo-tape dos Mayhem que a onda se difundiu pela Europa, sendo talvez o nome mais forte e mais significativo do género e os grandes iconoclastas do “true norgwegian black metal”, o caso paradigmático, que encontra a figura máxima, no seu fundador. Do outro lado, foi Burzum que agitou as margens, foi Vikernes o principal responsável pela queima de várias igrejas na Noruega, pela operatividade das organizações, tendo efectivamente subido ao “poleiro”, com a sua detenção, pelo assassinato, do outro, de Euronnymus. Toda uma espiral de violência, de extremidade em que sentido se entenda dentro do contexto, que não chegou ao fim, apesar do claro ponto final num círculo, em que o grande protagonista, foi alguém do contra, alguém do próprio. Porquê a distinção tão cuidada?

Porque a música, como arte, como cultura, como (anti)religião, como enfim, uma realidade intrincada e integrada, é um privilégio. Porque é cada vez mais necessário mergulhar no passado, nas origens dos nossos mais de três mil anos de história como europeus, para encontrarmos, para criarmos, para fugirmos ao imediato idiota e superficial. Embora, esteja longe de compartilhar de ideias políticas extemistas, e de afirmar superioridades ou inferioridades culturais, não posso deixar de denunciar um estádio civilizacional, em que a intervenção não é para qualquer espírito. Porque a conceptualização, e a criação num sentido original, é cada vez mais um lugar longínquo, e bem necessário. Porque as personalidades estão a perder-se, e porque a identidade não no sentido estrito e individual, está a fundir-se. O Black Metal encaixa-se. Burzum encarna esta luta. Uma luta real, uma luta encarniçada, uma luta “abastadamente sócio-cultural”, que o preconceito anti-cristão não abarca por si. Conhecendo o Black Metal, conhecendo, até, o Metal Extremo de hoje e de ontem, sabemos que a imagem e o choque imediato inundam o resto. Burzum não. Burzum são questões à parte de qualquer afirmação, independente de políticas ou filosofias, independente até, das crenças objectáveis do seu autor. Varg Vikernes, como ser polémico, como ser fanático – talvez os traços mais marcantes que possa compartilhar com a restante “cena musical” – foi até dentro do “Inner Circle” uma figura ingrata, que mesmo tendo estado associado aos próprios Mayhem, e ao “quartel general” (a loja Helvetio), encontrou na própria expressão o seu próprio espaço e o seu próprio e merecido protagonismo. Foi diferente, foi anómalo, no meio de “obesidade subversiva”. Foi desprezivelmente pertinente, no meio de bastante amorfismo, que ainda hoje é copiado, até cá em terras lusitanas.

É Filosofem o canto de cisne. É Filosofem, à parte de todo o seu significado cultural de inspiração pagã e nacionalista, um autêntico “must-listen”. Música artesanal, no seu auge, na sua pureza cristalina, na sua simplicidade arrasadora, na sua transcendentalidade. Tal como os grandes mestres do cinema nórdico, Bergman, Sjöström, Eisenstein, Dreyer, Stiller, em que a imagem mais simples, é a mais complexa, a mais poderosa, e a mais significante; ou tal como é o momento chave e a cena chave que engolem a construção de suave progressividade, no teatro de Strindberg e de Ibsen, Vikernes constrói esta obra prima com base no arranjo-chave e no riff-chave, que presidem com extraordinária persistência a composições oscilantes, suportando um complicado e reconhecível conceito artístico. O previlégio da repetição, da intuição, do abstracto. A evocação da introspecção, do intimismo, do supra-sensível. Está longe no entanto, de ser uma obra fácil e acessível, na medida em que nasce apartir de um contexto particular, e do louvável facto ser bastante aberta. Sendo Burzum um projecto terrivelmente pessoal desde a sua fundação, este é talvez o marco mais altruísta, e paradoxalmente, elitista. Talvez todos os artistas com uma obra obsessivamente pessoal e pessoalizada tenham um trabalho nuclear na sua evolução, uma espécie de centro irradiante a partir do qual é possível ler em sentidos diversos a edificação da sua obra, ocupando Filosofem, nessa medida o protagonismo.

Acarreta naturalmente o adjectivo de “conceptual”, estando dividido em cinco andamentos, um dos quais dividido em duas partes. “Dunkelheit” e “Erblicket die Töchter des Firmaments” são odes puramente transcendentais, abstractas. Divagações sobre uma sentimentalidade representável. Um novo tipo de afirmação artística que prima pela harmonia temperamental interior do indivíduo, desvalorizando as leis da objectivização relativas à obra de arte, destruindo graças a si, e por si, qualquer verosimilhança e qualquer repetição alheia ao seu interior. São composições de uma unidade fabulosa, e discursos de uma solidez extraordinária. O resto do álbum segue-lhes as pisadas. “Jesu’Tod” é o andamento guerreiro anti-cristão, integrado contudo no conceito artístico desenvolvido, conseguindo no entanto alguma autonomia em relação aos restantes. “Rundgang um die transzendentale Säule der Singularität” e “Gebrechlichkeit” são acontecimentos dignos de registo absoluto, que pelas suas características ímpares, completam o álbum dentro da sua própria escolha. São golpes de abstracção sobre o clássico do sujeito interpretador. Como referi em cima, o grau de objectivização a partir de determinadas impressões pessoais é muito esbatido, para não dizer, risível, e pensando que uma interpretação é tanto mais completa quanto mais conserva todas as relações do objecto interpretado, e a sua harmonia especial e típica quanto possível, tendo com isso em conta os seus apoios conceptuais já explicitados, Filosofem atinge formas inéditas neste âmbito. O contacto resulta, de forma quase perfeita, uma vez que nos consegue fazer esquecer o objecto interpretado, na própria interpretação.

Podem interrogar-se sobre a validade deste álbum no contexto cultural, e nas correntes filosóficas que apresentei. Não há dúvida de que, passando pelos títulos das faixas, pela capa, e até pelo título, estamos mais que argumentados. Do ponto de vista da evocação sonora, melancolia e angústia niilistica, partilhada com sensos de romântico obscuro, em perfeita sintonia com o todo caracterizador do existencial fenomenológico trabalhado, aqui de forma deprimente, mas afirmativa. “Filosofem”, para além de ser profundamente aberto e ambíguo, é tudo menos uma manifestação directa de um determinado ideal, afastando-se das primeiras obras como “Aske” ou “Det Som Engang Var”, para ser antes, uma peça de inspiração cultural europeia, neste caso nórdica, comparável ao recentemente lançado “Under Satanae” dos Moonspell, com Portugal, para não nos afastarmos do Metal e entrarmos no mundo do Folk, com quem partilham algumas cumplicidades teóricas interessantes. Não pensem sequer que me estou a comprometer em mais algum campo que o artístico, não me cabendo até sinceramente mais que tal.

Recomendo a experiência a qualquer um. É fantástico o facto de como com um teclado, uma guitarra e percussão, alguém consiga montar hoje em dia uma rede tão forte de conceitos, necessariamente fundados, através da criação, e de, acima de tudo, inovar e marcar. “Uma verdadeira lição de Esparta”, e um objecto de centralidade e densidade pertinentes, o que, volto a insistir, hoje é tão raro, como necessário.

Escolha da Semana

Television - Marquee Moon - Marquee Moon (Álbum)



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Blogger Bruno Matyas: A musica é talvez a melhor coisa que temos.O sentimento que nos emite,os efeitos que ela nos dá.A musica é hoje,talvez generalizada e desprezada.A verdadeira musica continua...e continuará sempre..quer tenha 10/20/30/1000 anos!

Contudo a musica tem também os seus pontos negativos.as loucuras,os ideiais, a forma como é encarada. Este senhor(neo-nazi)é um exemplo do que a musica é capaz de fazer.Tanto nos pode levar ao ceu...como ao inferno.

Diogo,tu sabes qual o meu estilo de musica.qual a minha forma de olhar para a musica.Não é propriamente o Black metal.

Contudo tens aqui um texto á tua altura.Com peso,medida e genialidade.

O Quarto paragrafo é qualquer coisa de maravilhoso;)

Grande abraço 17/11/07, 20:18  

Blogger Bruno Matyas: A coisa mais bonita que a musica tem e a mensagem que ela nos transmite.É por isso que sou fascinado pelos Pink Floyd! A mensagem a transmitir é genial...a forma como é trasmitida ainda mais genial é. 17/11/07, 20:21  

Blogger Anérgyné: Varg Vikernes? Tem um nome engraçado... Norueguês, nice. Assassino? I love him already.
Non, vou deixar-me de tretas: conheço pouco ou nada dessa "área" no metal, como sabes, tenho um campo musical muito.. hm... como ei de dizer? Sim, limitado.
Parecem-me, pelo que escreveste, uma banda bastante acima da mediocridade musical of this decade...Mas embora tenha entendido o que escreveste (que está impecável, limpo, muito bem construído e criativo), entendo que precise de conhecer a banda para poder avaliar o quer que seja.
Portanto calo-me. Escreves bem texugo, muitíssimo bem. Parabéns. 17/11/07, 22:59  

Blogger Unknown: É preciso uma certa coragem para desenterrar alguém tão maldito como o Varg, louvo-te o desprendimento.

Eu pessoalmente, sempre gostei dele pelas razões que a maioria considera erradas..

Por aqui me fico.

Excelente texto, como sempre. 18/11/07, 01:50  

Blogger Higuita: A qualidade deste texto é deliciosa.
Deu-me prazer ler este texto.
Continua ;) 18/11/07, 02:09  

Blogger Lex: Antes de mais, sinceros parabéns pelo magnífico texto e reflexão.

Acho que ninguém que esteja/tenha estado minimamente ligado ao Metal mais extremo está alheio a toda esta novela do Vikernes mais o Euronymus e as igrejas queimadas. No entanto, eu que não aprecio novelas, nunca me interessei em aprofundar o meu conhecimento sobre o caso. O teu artigo trouxe-me apenas a informação necessária para me despertar a curiosidade em ouvir o 'Filosofem', coisa que nunca me puxou. Não sei porquê, é daqueles fenómenos que não se explicam, já que eu funciono muito por impulsos, nisto do gostar e não gostar de uma música. Sinto-o, não o explico. :-P

Vais pôr-me a ouvir Burzum com mais atenção do que aquela ouvidela que eu já dei um dia e que não me serviu de nada. Thanks. ;-)

P.S.: queria apenas dizer ao brunomatyas que a culpa de haver pessoas com problemas como este não é certamente da música. Para um tipo fazer o que o Vikernes fez, é porque já existia algo dentro dele, que tanto seria despoletado pelo Metal como por hip-hop, se preciso fosse.
Não atribuamos as responsabilidades a uma Arte tão nobre, pois as únicas culpas serão fruto da fraqueza humana. Como sempre. 18/11/07, 13:42  

Blogger Diogo Sequeira: Fico contente Lex. Quanto à arte moral, Matias, não a penso enquanto necessariamente moralizadora, mas como veículo de expressão total (entenda-se, "humanisticamente falando") que necessariamente, tem de abranger o campo referido enquanto parte indelével do humano, apresentando-o se possível, descomprometidamente. Apesar de muita tinta continuar a correr sobre o assunto, creio que o teu conceito tende a ser ultrapassado nos dias de hoje. Obrigado a todos pelos comentários. 19/11/07, 19:30  

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