... and Corvus Corax for All
publicado por Lex

Permitam-me fugir hoje à regra e não falar de Metal, pois é minha necessidade premente pôr em palavras aquilo a que assisti no último Sábado. De tão fantástico que foi, merece ser conhecido pelo maior número de pessoas possível, como se de uma revelação se tratasse.

O contexto: noite fria em Coimbra. Um centro cultural de bairro, construção do Estado Novo, frequentado normalmente pela população típica de um bairro residencial de uma cidade de média dimensão (e bem bonita, já agora). Alguns dos frequentadores habituais, homens nos seus 50, 60 e tal anos, encontravam-se no bar do Centro Cultural Norton de Matos preparando-se para assistir ao jogo da Selecção acompanhados da sua cerveja, mas no piso de baixo algo de pouco comum se passava, e resolveram espreitar.
Havia um (ainda) pequeno grupo de jovens vestindo de negro, as raparigas com carregadas maquilhagens escuras em volta dos olhos e roupas com rendas, todos eles com longos cabelos e alguns com compridas gabardines de couro. Num canto junto à porta de entrada acabava de se montar uma banca de venda de t-shirts, posters e CD's. A porta para o recinto do evento propriamente dito ainda estava fechada. Enquanto se esperava que a abrissem, começavam a chegar os primeiros elementos 'estranhos' à moldura humana anteriormente descrita: um pequeno grupo de pessoas entre os 40 e os 70 anos, talvez um casal de meia idade acompanhado pelos pais e um amigo. Roupas normalíssimas de um qualquer dia de trabalho. Ainda pensei se não estariam ali para tomar um café ou ver o jogo, mas desfizeram-me as dúvidas quando se dirigiram às meninas da bilheteira e pediram entradas para todos.

O evento: o terceiro e último concerto da mini-digressão de Corvus Corax em Portugal, após as apresentações em Braga e em Corroios nos dois dias anteriores. Para estreia no nosso país, eu diria que não lhes correu nada mal.

Abria-se a porta finalmente, pontualmente. Eu não fazia ideia de que tipo de espaço esperar... Saiu-me um ginásio, com não muito mais que 100m², um palco relativamente pequeno e uma iluminação básica. "Como raio é que vão meter oito gajos neste palco?", pensei eu. Mas os meus receios eram completamente infundados, e o recinto provaria ser perfeitamente adequado ao tipo de espectáculo que iria acolher naquela noite.

De cada lado do fundo do palco estavam já colocados os estandartes de Corvus Corax: bandeiras em veludo vermelho-escuro bordejadas de dourado, com o lettering e o corvo de asas abertas a meio, também em dourado. Mas mais impacto que esses estandartes causaram os instrumentos que já se podiam ver. As 'baterias' já estavam todas no seu sítio... e que baterias, senhores. Duas autênticas máquinas de deitar a casa abaixo, completamente artesanais (como todos os instrumentos tocados pela banda, de resto, e que não são poucos) e decoradas com toda a sorte de objectos de origem pagã.

Olhando em volta vi uma câmera de filmar estrategicamente colocada na parede oposta ao palco e que transmitiria imagens dos concertos para uma tela ao lado do mesmo. Ora, como não havia ali qualquer possibilidade de fraca visibilidade que justificasse um écran gigante, só me resta pensar que este concerto foi muito bem gravado e guardado para posterior utilização por parte de... não sei quem. Havia também uma câmera móvel a filmar junto ao público. Gostaria muito de ver isto num DVD, mas só estou a fazer suposições.

A falta de isolamento térmico do edifício começava a tornar difícil e fria a nossa espera. Sem música, havia que bater com os pés no chão de modo a não os deixar congelar durante os cerca de 45 minutos que demorou até que a banda de abertura pisasse o palco. Durante a espera eu observava o público e via que a percentagem de pessoas mais velhas aumentara. Dois sessentões já ensaiavam passos de dança um com o outro em ambiente de festa, e um possível neto de 10 anos aguardava sentado no parapeito das janelas altas. Ao meu lado, uma senhora nos seus 50 encostava-se aos espaldares e olhava atenta para o palco. Não notei o mínimo sinal de tédio ou desconfiança, é como se todos soubessem ao que iam... e se calhar sabiam mesmo. Será que a aparição da banda no programa da Fátima Lopes sempre deu os seus frutos? Entretanto junto à porta de entrada assoma um homem alto e magro, de cabelo comprido, vestindo um fato cor-de-laranja de presidiário de Guantanamo - era um dos Corvus, Ardor vom Venushügel, o 'cigano' de serviço, que avaliava o ambiente.

Os húngaros "The Moon & the Nightspirit" subiram finalmente ao palco, sóbrios e determinados a fazer o warm-up com um folk de inspiração celta, suave e agradável, encabeçado pela voz angelical de uma vocalista cuja indumentária eu já não pensava ser possível ver num palco, nos dias que correm: uma minimalista toga negra com capuz, cintada por um adorno simples... e nas mãos, um violino. Gostei. Provou que não são precisos grandes folharecos, nem decotes ou saias com rendinhas para uma mulher se fazer valer em cima de um palco. A miúda tem presença e boa voz, embora a mim, muito pessoalmente e sem nenhum desmérito, não me puxe o seu tipo de timbre. Mas foi uma boa prestação e reconheço-a como tal, sem problemas.

Após quatro temas a banda abandona o palco e têm início as manobras dos roadies a prepará-lo para os headliners da noite. Roadies misturados com pessoal do Centro, velhotes que, admirados, lhes perguntavam várias vezes por gestos: "Então mas estes fios são todos para tirar? Os microfones também?... Está bem, vocês é que sabem...", e encolhiam os ombros como que a dizer "esta juventude está doida". Tudo o que fosse amplificação saiu do palco. Corvus Corax, como bons menestréis 'medievais' que são, não precisam disso (não numa sala tão pequena, pelo menos).
Achei por bem não deixar que, desta vez, a minha pequena estatura me impedisse de apreciar o espectáculo, pelo que me cheguei lá para a frente. Já que não ia haver mosh, estaria a salvo e veria a coisa como devia ser. Instalei-me junto ao palco e esperei... esperei... gelei... esperei. Vieram dois roadies fechar as cortinas à nossa frente e seguiu-se mais espera. Fazia-se fumo lá atrás, experimentavam-se as máquinas. Eu espreitava pela fresta entre a cortina e o chão, mas nada se via.
Gastei algum tempo com o meu pessoal a tentar espreitar para as setlists que entretanto haviam sido 'fita-coladas' ao chão. Cerca de 20 músicas... era o normal. Tinha sido colada igualmente uma folha grande, manuscrita, ao centro do palco, com umas palavras estranhas. Era Português para alemão ler: "meninusch, meninasch, todusch, obrigado, para todasch asch meninasch bonitasch". Durante o espectáculo, o vocalista principal (Castus Rabensang) usaria essa fonética para interagir connosco.

Eis que as cortinas se abriram finalmente e pouco mais vimos do que fumo, um fumo intenso que revelava apenas as silhuetas dos cinco alemães com gaitas de foles que avançavam para nós, mais as dos três percussionistas que se mantiveram nos seus postos, lá atrás. O primeiro impacto foi avassalador. Eu sabia que eles eram bons naquilo que fazem, mas presenciando-o ao vivo, ali a escassos centímetros deles, tal ideia foi completamente superada pela realidade. É inegável a qualidade deste colectivo, o empenho que põem em tudo o que nos mostram (desde os instrumentos e roupas até às coreografias) e também o efeito que provocam no público.

Mal se recompuseram do impacto inicial as pessoas renderam-se, começaram a bater palmas e a dançar e só pararam no final de tudo. O ambiente era de festa, a alegria e energia eram contagiantes e não havia maneira de se lhes fugir, nem que se quisesse. Mas afinal... porque se quereria?

Durante hora e meia houve música medieval contemporanizada (palavra que inventei agora para dizer, basicamente, que o que eles fazem é pegar em matrizes musicais da Idade Média, criar as suas com base nessas e borrifá-las com algo de hoje em dia, como uma batida a atirar para o electro, por exemplo), feita por gaitas-de-foles de vários tamanhos e feitios, cornetas, bombos, pratos, alaúdes e outros instrumentos bem mais estranhos, todos fabricados pelos próprios elementos da banda com base em pesquisas rigorosas de documentos medievais. Também as roupas e o calçado não foram descurados e correspondem ao que na altura os menestréis usavam. As raparigas atrás de mim emitiam risinhos histéricos quando Castus rodopiava fazendo subir a saia de tiras que envergava e dando a entender (mas não mostrando) que naquela altura não se usava roupa interior. Sim, eles são rigorosos a esse ponto.

A música é feita de influências várias: os sons ciganos da Europa de Leste, as festas da corte de França, o canto gregoriano, o folclore celta ou até as sonoridades mouriscas. É maioritariamente instrumental e pouco cantada. Quando o é, é em latim, romeno ou em francês arcaico, por exemplo. Para quem, como eu, liga a picuinhices dessas, acreditem que é algo delicioso de se ver, ouvir, sentir, cheirar... tudo.
Ficar-se colado ao palco tem a vantagem não só de se ver tudo sem cabeçudos à frente, mas também (e sobretudo) a de se poder perceber melhor o estado de espírito dos artistas à medida que o espectáculo evolui. Daquilo que eu vi, acho que a banda gostou tanto de nós como nós deles. Isso é um bom sinal para quem os quer ter de volta tão depressa quanto o possível.


"Venus Vina Musica". Como poderão ver pela agitação da câmera, não é mesmo possível uma pessoa ficar quieta durante a actuação destes tipos. :-D

Houve vários momentos marcantes durante a actuação. A "Ballade de Mercy" (uma das músicas que agora não me sai da cabeça), dedicada "a todasch asch meninasch bonitasch" e onde se deram mais provas da qualidade vocal dos elementos da banda; a "Platerspiel", onde foi a nossa vez de darmos provas da nossa capacidade vocal, comandados por maestro Castus que ora mandava cantar 'asch meninasch' ora 'usch meninusch', ora forte ora piano... Parecia que tínhamos voltado aos coros da escola primária, mas resultou muito bem, toda a gente aderiu e adorou. Mas o ponto mais alto de todo o espectáculo foi mesmo o final. Nem tenho a certeza de conseguir transpô-lo para palavras... Farei o melhor que conseguir.

"Ballade de Mercy".

Durante todo o tempo as cerca de 250 pessoas aplaudiram, acompanharam, cantaram, dançaram, saltaram, gritaram ao ritmo frenético daquelas músicas, abrandando somente na "Ballade de Mercy" mas mantendo a animação. Havia um ambiente de festa genuíno, em que todos estávamos em sintonia tanto uns com os outros como com a banda. No último tema, os Corvus Corax conseguiram a verdadeira proeza de pôr toda a sala muda e queda, sem o pedirem num único momento. Só com o poder da música e da encenação.
Enquanto dois dos percussionistas se mantiveram nos seus postos, o resto da banda perfilou-se à nossa frente tocando uma música calma, triste... magoada. "Lamentatio Coelibatus", caso estejam interessados em ouvir. Ardor vom Venushügel sai então da formação, devagar... Dirige-se ao centro do palco, volta as costas tatuadas para nós e ajoelha-se. A música continua a tocar sempre no mesmo tom, quase sagrado.

A esta altura, todo o público estava em silêncio, curioso acerca do que iria acontecer. Ele saca de um pequeno chicote de couro e começa a flagelar-se ao ritmo lento da música. Os restantes colegas de banda mantêm-se nos sítios, solenes. Lembrei-me daquela cena no "Braveheart" em que os escoceses tocam as suas gaitas-de-foles proibidas à noite em segredo, em homenagem a um amigo morto. Toda a gente se manteve calada, quieta e arrisco dizer que com um nó na garganta, durante largos minutos. Eu dei por mim com os braços cruzados em sinal de respeito por alguma coisa, instintivamente, a observar e a absorver toda a cena que se desenrolava mesmo à minha frente. Nestes anos todos de concertos, nunca eu tinha presenciado tal comunhão entre banda e público. Foi forte... Muito forte. Ardor levantou-se e retomou o seu lugar e a sua gaita-de-foles. Ninguém deu um pio. Só mais tarde, à medida que a música se aproximava do fim, um aplauso lento, compassado, emergiu lá do fundo da sala e foi avançando aos poucos, como uma onda, até cá à frente. Que eu soubesse, nada disso tinha sido combinado. Simplesmente arrepiante.


No final de tudo a banda agradeceu e foi fortemente aplaudida, mas com mais respeito do que com a alegria e leveza de antes do encore. Quando todas as luzes se acenderam ainda pairava no ar alguma solenidade. Poucas pessoas se riam, algumas ainda estavam a tentar perceber o que se tinha passado ali, e a maioria continuava rendida áquela espécie de ritual, de missa, de... o que quer que se tenha passado naquele palco, e que teve o poder de emudecer 250 almas agitadas e festivas.

Só ao sair da sala é que tornei a dar pelo frio. Ali dentro não houve temperatura baixa que resistisse a tanto salto e as minhas mãos estavam vermelhas de tantas palmas. Passando pela banca do merchandise fiz três ou quatro estragos e se não fosse pelo pessoal dos outros concertos terem esgotado os pin's, seriam cinco os estragos.

À saída ainda espreitei para o autocarro dos Corvus, que os esperava lá estacionado ao lado... Mas a estrada até Gaia esperava-me e era provável que eles ainda por lá ficassem a deitar abaixo o caixote de Sagres Mini que vi passar para o backstage antes do concerto. Se não fosse por isso não teria perdido a oportunidade de lhes dar pessoalmente os parabéns... Bem, provavelmente não diria nada de jeito e limitar-me-ia a apertar-lhes as mãos e a balbuciar qualquer coisa de incompreensível. É que ainda por cima eles são enormes, eu dou-lhes aí pelo sovaco e parecendo que não, isso intimida uma pessoa. :-P


De modo que é capaz de ter sido melhor assim. Durante toda a viagem revi na minha mente um espectáculo único, possuidor da essência daquilo que deveriam ser todos os concertos, ao fim e ao cabo: uma celebração onde tanto banda como público partilhem o mesmo objectivo, que é viver a Música.
Também voltei a pensar por que raio um espectáculo como este não poderia ter ido para uma Casa da Música (cuja construção paguei com os meus impostos e cujo cartaz até hoje nunca teve nada para mim), para um Theatro Circo em Braga ou para uma Aula Magna em Lisboa, em vez do Cine-teatro de Corroios (de cuja falta de condições ouço tanta gente a queixar-se). Acho eu que Corvus Corax até preenchem os requisitos mínimos para serem considerados eruditos... Afinal estão a recriar algo histórico, são acústicos... Até já interpretaram uma ópera consagrada (Carmina Burana). Que mais faltará para os porem a tocar em lugares mais dignos da sua dimensão? Não que em Coimbra tenha faltado alguma coisa de importante... Só talvez mais algum jogo de luzes... Mas vendo bem, deste modo mais simples até acabamos por presenciar um espectáculo mais fiel ao espírito medieval. :-D
Mas fica a sugestão às salas mais conceituadas para que prestem atenção a estes tipos.

E seja em que sala for... que voltem sempre.

(Todas as fotos e vídeos do espectáculo são de minha autoria, daí que não haja vídeos mais longos que 35 segundos. É o que se arranja, e é melhor que nenhum).


Escolha da semana:

É-me difícil resistir à tentação de pôr Corvus Corax, mas vá... Fiquem com um excelente exemplo de Industrial - os eslovenos Laibach, com "Alle Gegen Alle".

\m/

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Blogger Unknown: Pois, graças a uma pequena brincadeira tu sabes com quem, no outro dia pus-me a ouvir isso e a procurar mais.

Para te dar uma ideia melhor (ainda que nao conheças, provavelmente), a minha onda em casa é Dead can Dance, Cocteaw Twins, This Mortal Coil, Lisa Gerrard, Elizabeth Frasier, Denez Prigent (aquilo a que chamas francês arcaico, é na realidade bretão, este ultimo senhor só canta nessa lingua).

Resultado, vicio novo, ando a ouvir estas gaitas de foles e sons marados há uns 3 dias, tenho mm inveja de não ter visto, mas nunca tinha ouvido falar antes sequer...

E esta crónica está simplesmente fantástica, por momentos até parece que lá estamos contigo...

P.S- Lixaste-me o post de Carmina Borana ;)))) 23/11/07, 02:05  

Blogger Lex: Bem, conheço esses nomes por alto. Ainda ontem uma certa pessoa me pôs a ouvir This Mortal Coil, precisamente com a Lisa Gerrard, que, por sua vez, eu já conhecia da banda sonora do "Gladiator".
Agora percebo porque é que essa certa pessoa estava a ouvir isso, assim do nada...

Obrigada, a minha intenção era mesmo levar-vos a todos lá para o meio da festa o mais que pudesse. :-)

P.S.: não lixei nada, mal falei disso. :-x 23/11/07, 09:02  

Blogger Unknown: U know, it goes like the old saying, I show mine, you show me yours ;))))))
LOL 23/11/07, 11:44  

Blogger Talionis: Corvus Corax será, quase certamente, aquela banda que toda a gente torcerá o nariz quando apenas ouve falar. "Quê, gajos a tocar gaitas de foles? Ya, deve ser giro... o quê, ouvir mais do que 1 minuto disso? Nãã...".
E depois, Corvus Corax será o tipo de banda que ninguém consegue, no seu perfeito juízo, dizer que não gosta. É um universo diferente da música, não tem ligação com rigorosamente nada, e simplesmente... cativa.

A quem der o benefício da dúvida aos Corvus, verão que não se arrependem. Comecem por Platerspiel e Vinus Vina Musicam. E nunca mais pararão.

Depois de ver algumas das minhas bandas favoritas a tocar ao vivo, algumas delas bem mais do que uma vez, nunca saí de um concerto como saí do de Coimbra. Foi único, foi imenso, foi... fosga-se, foi mesmo excelente :|. Quero mais.

E esta crónica está, "apenas" a esse nível. E quem lá esteve perceberá o elogio que é. 24/11/07, 02:01  

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